2 de outubro de 2019, 8h36
Por Igor Nascimento de Souza e Rodrigo Dall’Acqua
Rodrigo Dall’Acqua
No mês de setembro deste ano, julgando um pedido da defesa do ex-presidente Lula, o TRF da 4ª Região tratou de um tema relevantíssimo para empresas e cidadãos brasileiros: a validade jurídica de informações sigilosas tornadas públicas por meio de vazamentos ilegais.
O caso concreto, como é notório, envolvia as mensagens no Telegram de membros da Força Tarefa da Operação Lava Jato, obtidas ilegalmente por um hacker e publicadas pelo site The Intercept Brasil. A decisão entendeu “não haver possibilidade de aproveitar as ilícitas interceptações de mensagens do aplicativo Telegram, porque despidas de decisão judicial que as autorizasse”. Citando precedentes do STJ, o TRF concluiu que toda e qualquer prova protegida por sigilo, obtida sem a autorização de um juiz, é ineficaz e eivada de nulidade absoluta. Reconheceu que a única exceção a esta regra seria a possibilidade de uso da prova ilícita em favor do acusado, mas entendeu que no caso específico isso não seria cabível, situação que não será objeto da presente análise.
O fundamento constitucional desta decisão pode ser aplicado para todos os casos em que dados sigilosos fiscais, bancários ou telemáticos são ilegalmente apropriados por ex-funcionários ou hackers e indevidamente divulgados. Exemplos não faltam. A base de dados do escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca foi invadida por um hacker e 11,5 milhões de arquivos de empresas, trustes e fundações (estruturas societárias presumidamente lícitas, ressalte-se) formaram a série de reportagens denominada “Panama Papers”. Milhões de outros documentos sigilosos também foram vazados nos casos “Bahamas Leaks” e “Paradise Papers”.
O cenário é cada vez mais propício aos grandes vazamentos. O hacker responsável por pela invasão do “Panama Papers” publicou uma carta – sob o título: “A revolução será digitalizada” —pedindo proteção jurídica aos vazadores. Plataformas jornalísticas como o The Intercept, WikiLeaks e, principalmente, o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), reúnem jornalistas de diversos países e possuem canais abertos para incentivar os whistleblowers a enviarem informações de empresas, governos e serviços públicos (“leak to us”, conclama o site do ICIJ). Importante deixar claro que, ao divulgarem informações de interesse público, ainda que de origem ilícita ou duvidosa, os jornalistas não cometem ilegalidade e cumprem a sua função social. O problema está no uso que o Estado faz destas reportagens investigativas.
No Brasil, o “Swiss Leaks” é o pior exemplo de uso ilegal pelo Governo de informações vazadas ilicitamente. Relembrando, o caso teve início quando um ex-funcionário do banco HSBC se apropriou criminosamente da base de dados dos clientes na Suíça, tentou vender as informações para outros bancos e, por fim, as entregou para o governo francês e para os jornalistas do ICIJ. Indiscutivelmente, a fonte primária de obtenção dos registros bancários é ilegal e criminosa, tanto que o vazador foi condenado a cinco anos de prisão. Porém, no Brasil, mesmo diante da flagrante origem ilícita dos dados bancários, as reportagens jornalísticas sobre o tema renderam apurações no COAF, na Receita Federal, uma CPI e centenas de inquéritos policiais. Diversos contribuintes com contas no HSBC, encerradas ou mesmo legalizadas, tiveram que prestar explicações em diversos órgãos públicos.
Nenhum procedimento deveria ter sido instaurado pelas autoridades brasileiras com base na lista de correntistas do “Swiss Leaks”. O mesmo fundamento usado pelo TRF da 4ª Região para impedir Lula de usar como prova as mensagens vazadas pelo “The Intercept Brasil” deve valer em defesa do cidadão investigado por ter sido citado em um vazamento de dados. Dados sigilosos obtidos ilegalmente não podem ser usados como prova contra ninguém.
O Poder Judiciário tem o dever de declarar a inadmissibilidade absoluta, para quaisquer fins de Direito, de informações obtidas por meios ilícitos, sob pena de implodir as bases de todo um sistema jurídico que preza pela licitude e ética. Relativizar este entendimento com base em argumentos como no princípio da razoabilidade ou no interesse punitivo implicaria no apoio do Estado ao acesso criminoso de dados sigilosos, colocando as autoridades estatais na condição de verdadeiros parceiros dos hackers.
Cada vez mais, a nossa vida privada é registrada em plataformas eletrônicas vulneráveis a toda sorte de acesso criminoso. As autoridades brasileiras não podem seguir admitindo como prova dados originários de vazamentos ilegais somente quando lhes é conveniente para investigar e constranger contribuintes e empresas.
Igor Nascimento de Souza é advogado tributarista, sócio do Madrona Advogados e membro da International Fiscal Association (IFA).
Rodrigo Dall’Acqua é advogado criminalista, sócio do Oliveira Lima e Dall’Acqua Advogados e membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Revista Consultor Jurídico, 2 de outubro de 2019, 8h36