Lei sobre crimes tributários trará muitas ações

O tratamento ao crime tributário no Brasil mudou abruptamente em março, quando entrou em vigor a Lei 12.382, de 2011. A norma prevê que a suspensão da pretensão punitiva referente aos delitos tributários somente ocorrerá se o pedido de parcelamento do débito for feito antes do recebimento da denúncia, ou seja, da efetiva instauração do processo penal. A mudança é muito significativa, já que, desde 2003, um empresário que optasse pela quitação parcelada de sua dívida com o Fisco seria prontamente beneficiado com a paralisação da ação penal, pouco importando a sua fase, mesmo que uma eventual sentença condenatória já estivesse em grau de recurso. E, com o pagamento da última parcela, ocorria a extinção da punibilidade.

No mérito, a nova legislação é muito mais rígida, porque criou um marco temporal que até então não existia. Assim, o recebimento da denúncia passa a ser o divisor de águas, delimitando o momento em que o parcelamento impedirá o desenrolar do processo criminal. Certamente, irá prejudicar empresários que se empenham em quitar suas dívidas, pois, muitas vezes, o acusado é obrigado a aguardar por um programa de parcelamento viável, que pode surgir apenas depois do recebimento da denúncia. Neste caso, o início do pagamento parcelado não trará nenhuma consequência benéfica no curso da ação penal, o que, além de injusto, é um desestímulo ao próprio parcelamento. Por ser uma lei penal mais rigorosa, não poderá retroagir no tempo ou mesmo ser aplicada para casos em andamento, sendo válida somente para débitos tributários constituídos depois da data de sua vigência.

Mas, muito além do debate acerca de sua pertinência, é no plano formal que a Lei 12.382 revela sua inconstitucionalidade, graças à sua elaboração em flagrante ofensa às normas do processo legislativo. O histórico de sua criação explica as falhas técnicas. No começo do ano, o governo desejava aprovar com urgência uma lei fixando o valor do salário mínimo, mas precisava aguardar o andamento das demais votações em pauta na Câmara. Por força de regras regimentais, leis que não podem ser tratadas por medidas provisórias, como aquelas que disciplinam uma matéria de ordem penal, têm prioridade na votação. Então, para obter a preferência na pauta parlamentar, a matéria penal tributária foi inserida no texto de lei sobre o salário mínimo, fazendo com que o heterogêneo projeto fosse votado em caráter preferencial e aprovado num piscar de olhos, entrando em vigor dois dias úteis após a data de sua publicação.

Concebida para furar a fila de votações, a Lei 12.382 gerou um verdadeiro Frankenstein legislativo, tratando de assuntos totalmente distintos, como o valor do salário mínimo e o tratamento processual-penal aplicável aos crimes tributários. Em seus cinco artigos iniciais, trata exclusivamente de temas ligados ao salário mínimo, para, repentinamente, no sexto e derradeiro artigo, mudar radicalmente de assunto e adentrar na seara do direito penal. Não há dúvidas de que esta confusão de temas ofendeu a Lei Complementar 95, de 1998, que dispõe sobre a elaboração e redação das leis e prevê, em seu artigo 7º, que cada norma “tratará de um único objeto” e “não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão”. Vale lembrar que no nosso ordenamento jurídico uma lei complementar tem status de norma constitucional, portanto, uma lei federal contendo diferentes objetos ou matéria estranha é inconstitucional.

A ilegalidade na elaboração da Lei 12.382 já foi objeto de protestos infrutíferos quando de sua votação na Câmara, mas pode ser reconhecida por meio de ação direta de inconstitucionalidade. Em complemento, a competência para declarar a ofensa constitucional não é exclusiva do Supremo Tribunal Federal. Ao julgar um caso concreto de crime tributário no qual o pedido de parcelamento tenha ocorrido depois do recebimento da denúncia, qualquer juiz ou tribunal poderá apontar a inconstitucionalidade da lei e suspender a ação penal.

Não se pode falar em crime tributário no Brasil sem reconhecer a existência, ao lado da figura do costumeiro sonegador, de uma enorme parcela de réus que, na verdade, são vítimas de um sistema tributário tão intrincado quanto perverso. Nesse complexo cenário, é censurável a edição de uma norma que repentinamente deixa de distinguir e tratar adequadamente o acusado que se propõe a parcelar e pagar seus débitos. Ainda pior é constatar que essa mudança legislativa foi trazida de carona em uma norma absolutamente distinta, em patente inconstitucionalidade — o que, inevitavelmente, trará uma enxurrada de contestações judiciais e muita insegurança jurídica.

Artigo publicado no Valor Econômico e Consultor Jurídico em 08/04/2011.

José Luis Oliveira Lima