Já somos monitorados demais

Membros da Al-Qaeda devem ter ficado satisfeitos em saber que, sob o pretexto de combater o terrorismo, o governo americano instalou uma ampla rede de espionagem por meio do monitoramento geral e indiscriminado de seus próprios cidadãos.

As informações são imprecisas, mas sabe-se que números de chamadas telefônicas de todos os cidadãos foram disponibilizados para serviços governamentais de inteligência. Os dados municiaram os trabalhos de agentes secretos que inseriram e depois retiraram os responsáveis pelo atentado na maratona de Boston do rol de suspeitos. Espiões que, talvez, foram colegas de curso dos ingleses que viram no brasileiro Jean Charles um terrorista no metrô londrino.

Essa bisbilhotagem poderá causar mais estragos do que uma bomba. Certamente existirão os abusos, bastando lembrar que o governo americano que espiona “para o bem” é o mesmo que atiça a fiscalização tributária contra seus opositores e que vasculha ligações telefônicas de jornalistas.

Ainda que sem os inevitáveis abusos, a própria democracia será atingida, uma vez que a intimidade é um elemento essencial para a dignidade da pessoa humana. Desnudado desse pequeno campo de proteção particular, o cidadão perde a capacidade de se enxergar como um ser único e titular de direitos. Por consequência, também não consegue compreender e respeitar as particularidades do outro. Sem o resguardo da vida privada, não há ambiente para o desenvolvimento livre da personalidade, acabando com o oxigênio vital para a sobrevivência de um Estado democrático.

No Brasil, felizmente, a proposta americana de devassa indiscriminada não seria admitida em nosso sistema jurídico. Aqui, a quebra de sigilo somente pode ser autorizada por uma decisão judicial devidamente fundamentada, demonstrando que existem indícios de que aquele específico cidadão é um possível autor de um determinado crime. Primeiro deve vir a fundada suspeita, depois a investigação, jamais o contrário. A violação à intimidade é tratada como medida de exceção, mas, ainda assim, são constantes os abusos.

Confrontadas com uma ordem abusiva, as próprias empresas responsáveis pela guarda dos dados sigilosos podem lutar pelo resguardo da intimidade de seus registros.

Diante de uma ordem de quebra de sigilo manifestamente indiscriminada e genérica, instituições financeiras, operadoras de telefonia e provedores de internet podem impetrar mandado de segurança para impedir uma devassa coletiva que ameace a privacidade de seus clientes.

Exemplificando, um banco possui legitimidade jurídica para se insurgir contra uma ordem de entrega de extratos de todos os clientes de uma agência. Defende-se o direito de guardar segredos. O indivíduo alvo da violação, logicamente, também pode agir para impedi-la ou cobrar reparação pelo dano sofrido.

Ações em defesa da intimidade são cada vez mais necessárias no mundo moderno. Hoje, cada um de nossos passos fica registrado: a compra com cartão de crédito, a multa do automóvel, a conversa na rede social, os sites acessados, os números discados. Ao vivermos já somos involuntariamente monitorados.

Esse enorme banco de dados pode evidentemente ser utilizado no combate ao crime, mas somente diante de uma fundamentada suspeita contra o cidadão. Buscar um maior poder do Estado no uso da tecnologia para um controle social extremo significa rejeitar a democracia e correr em busca do autoritarismo. É justamente nesse momento em que nossa segurança é ameaçada que devemos nos lembrar de que garantias individuais como a intimidade não representam um entrave a nossa proteção, mas, sim, traduzem a essência de nossa humanidade.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 15/06/2013.

José Luis Oliveira Lima