Desafios atuais da delação premiada

Discussões sobre a delação premiada costumam se dar de forma polarizada, com posições veementemente contra ou a favor.

Para alguns, o instituto é abjeto, pois o Estado não pode institucionalizar a traição. Outros argumentam que não há valor moral em manter o silêncio entre integrantes de uma organização criminosa e que o delator age eticamente ao confessar seus pecados, ajudando no combate ao delito que antes cometia.

O debate sobre o valor ético e moral da colaboração premiada é relevante e merece ser aprofundado, mas não pode eclipsar questões que reclamam imediata reflexão.

A lei está em vigor e várias de suas mazelas estão sendo expostas, em tempo real, na Operação Lava Jato. Membros da advocacia, Ministério Público e magistratura desempenham papel essencial nesse delicado acordo, e vários de seus deveres e deslizes já se mostram claros.

O advogado tem como principal incumbência orientar o cliente sobre todos os seus direitos -como, a quase esquecida garantia de preservação da imagem do delator (prevista em lei)- e de adverti-lo sobre seus deveres -notadamente a obrigação de não omitir circunstância relevante sobre crimes assumidos.

Para evitar que ocorra omissão de fatos na confissão, vale para criminalistas o exemplo dos advogados especializados em direito concorrencial, que, ao assessorarem interessados em acordos de leniência perante o Cade, realizam uma criteriosa investigação interna, analisando e-mails e documentos, entre outras providências, a fim de se aproximarem da certeza de que nenhum dado relevante será omitido.

As hipóteses de conflito de interesses merecem uma cautelosa reflexão por parte do advogado quando consultado para atuar na defesa de mais de um delator no mesmo caso. Uma divergência na versão de dois colaboradores pode acarretar a nulidade do acordo. O advogado tem o dever ético de recusar a causa se vislumbrar a mínima probabilidade de colisão entre as defesas de seus clientes ou de levar ao conflito com as informações sigilosas transmitidas pelos representados.

A opção pela delação não retira do cidadão o direito de ser assistido por um profissional comprometido e isento. É temerário constatar, na Lava Jato, vários colaboradores representados por um só advogado.

O Ministério Público, por sua vez, deve cuidar para que o papel de acusador não se sobreponha à função de fiscal da lei, jamais fazendo uso da prisão cautelar como meio de arrancar delações. Na construção do acordo, o MP não pode inserir benefício ou exigência não admitidos na legislação. Cobrar a desistência de recursos ou prometer vantagens patrimoniais ao delator são exemplos que a Lava Jato nos fornece de atuação do MP à margem da lei.

Diante de qualquer ilicitude, o juiz tem a obrigação de declarar a nulidade do acordo, sem temer a impopularidade de sua decisão.

Também por imperativo legal, o magistrado deve perscrutar todos os aspectos da personalidade do colaborador. Quem já descumpriu acordo anterior não oferece traços mínimos de confiabilidade para transacionar novamente com a Justiça.

Além de uma correta atuação de todos operadores do direito envolvidos, é importante que a mídia e a sociedade tenham uma adequada percepção da verdadeira dimensão da delação premiada, sem supervalorização da sua importância.

A lei nº 12.850/13 adverte que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. O depoimento não pode ser considerado prova, mas sim instrumento para produção de prova.

Para o bem do seu amadurecimento enquanto instrumento de auxílio no combate ao crime organizado, é essencial que a aplicação da colaboração siga estritamente a lei e os princípios constitucionais, anulando-se todo e qualquer acordo que flerte com a ilegalidade.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 02/03/2015.

José Luis Oliveira Lima